Intervista a Padre Martinho Lenz, tra i fondatori del comitato MST di Roma (1997) sul necessario Limite da porre alla proprietà della terra (in portoghese) + intervista avvocato Alfonsin



Title: Intervista a Padre Martinho Lenz, tra i fondatori del comitato MST di Roma (1997) sul necessario Limite da porre alla proprietà della terra (in portoghese)  + intervista avvocato Alfonsin
In occasione del Plebiscito sul limite della proprietà della terra (1-7 settembre 2010) l’Istituto Humanitas Unisinos (Sao Leopoldo, Brasil) intervista il gesuita. Padre Martinho Lenz, dottore in sociologia presso l’Università Gregoriana, dove ha discusso una tesi su “Movimenti sociali nell’era della globalizzazione”. Attualmente   é segretario esecutivo della Conferenza dei Provinciali Gesuiti dell’America Latina (CPAL) con sede a Rio de Janeiro. E’ stato cofondatore e animatore nei primi anni del Comitato di appoggio al MST di Roma

'O latifúndio brasileiro tem origem obscura, muito parecida com a legalização de um roubo''. Entrevista especial com Martinho Lenz

  
“Com que direito alguém chega a uma terra e se declara seu dono? Para os povos originários, é uma insanidade e um absurdo a pretensão dos ‘brancos’ que invadem terras coletivas para se apropriarem delas como se fosse coisa ‘abandonada’, vazia, objeto a ser possuído. Terra é dom de Deus e direito de todos”. O questionamento e a reflexão são de Martinho Lenz, jesuíta e sociólogo, e fazem parte da entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.

De acordo com ele, originariamente, o sentido da propriedade individual “era o de possibilitar a todos o acesso a um mínimo de bens necessários para a vida, um espaço de autonomia e de liberdade – e a garantia que esses bens necessários não fossem usurpados por alguém mais forte”. Mas a lógica capitalista subverteu essa concepção, e possuir terras se tornou sinônimo de poder, além de fonte de miséria e fome. Precisamos lembrar, diz Lenz, que a terra é “um meio para gerar outros bens, necessários para a vida, e não um fim em si”.

Do ponto de vista cristão, acumular bens ociosos é ilegítimo e imoral. “As terras ociosas estão dentro desse conceito”, explica. Por isso, limitar o tamanho da terra por proprietário “aumentaria a disponibilidade de terras para fins de reforma agrária”. Entretanto, destaca, o conceito de Reforma Agrária é muito mais amplo, e implica não apenas em disponibilizar terras, mas criar um projeto agrário e agrícola, que considerasse a agricultura familiar, além de uma política de segurança alimentar e produção de insumos, lembrando-se da sustentabilidade social e ambiental. Nesse sentido, é fundamental que aconteça o Plebiscito do Limite da Propriedade da Terra <http://unisinos.br/blog/ihu/2010/08/10/plebiscito-popular-pelo-limite-da-propriedade-da-terra/> , nos dias 1 a 7 de setembro, organizado pelos movimentos sociais e pastorais sociais.

Graduado em Filosofia e Teologia, é mestre em Sociologia da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), e doutor em Sociologia pela Universidade Gregoriana, em Roma, com a tese Movimentos sociais na era da globalização. É especialista em desenvolvimento das comunidades e cooperativismo pelo S. Francis Xavier College, no Canadá. É co-autor de Realidade Brasileira - Estudo de Problemas Brasileiros (Sulina) e Temas de Doutrina Social da Igreja (Porto Alegre: Paulinas, 2004-2006). Atualmente é secretário executivo da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina (CPAL), com sede no Rio de Janeiro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o sentido de um Plebiscito sobre o Limite da Propriedade da Terra?

Martinho Lenz – As experiências de Reforma Agrária mais exitosas realizadas no mundo e na América Latina tiveram como um dos seus eixos básicos o acesso à propriedade da terra para famílias sem terra com vocação agrícola. Dada a grande concentração da propriedade da terra no Brasil – das terras férteis e bem localizadas –, limitar o tamanho da terra de cada proprietário aumentaria a disponibilidade de terras para fins de reforma agrária. Importa ressaltar que uma Reforma Agrária em moldes modernos implica em muito mais do que disponibilizar terras. Implica em um projeto agrário e agrícola, voltado ao fortalecimento da agricultura familiar, com uma política nacional (e internacional) de segurança alimentar e de produção de insumos, além de uma política de sustentabilidade social e ambiental. O limite da propriedade contribuiria para com um uso mais racional e adequado da terra por parte dos médios e grandes proprietários rurais. Concordo com Sérgio Pereira Leite <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=33517>  em entrevista ao IHU-On-Line de que “a Reforma Agrária hoje ainda é necessária”. E o plebiscito popular proposto para o início de setembro constitui uma iniciativa muito válida no sentido da mobilização.

IHU On-Line – Em que sentido a limitação da propriedade da terra irá diminuir a miséria e a fome e promover a justiça social?

Martinho Lenz – O Brasil apresenta a 3ª pior desigualdade de renda no mundo, de acordo com dados recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Qualquer iniciativa séria para mudar esta posição que nos envergonha merece todo apoio. Miséria e fome têm causas políticas e estruturais, entre elas a falta de acesso a um trabalho estável e produtivo. O aumento de terra disponível, junto com outras condições necessárias, seria possível gerar trabalho e renda para uma massa populacional “sobrante”, que vem sendo empurrada para as cidades, já superpovoadas, e jogadas no subemprego. Estudos feitos por autores como Ricardo Abramovay <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=5930> mostram o custo mais reduzido da oportunidade de trabalho dos assentados de reforma agrária em comparação com o custo da criação de oportunidades de trabalho em outros setores. No espaço rural não há apenas empregos na área específica da produção agrícola. Basta pensar em setores novos como o agriturismo e a conservação ambiental.

IHU On-Line – Como é possível pensarmos a propriedade privada a partir de uma ética cristã? Quais são os limites e as possibilidades dessa concepção?

Martinho Lenz – Segundo a ética cristã, a toda forma de propriedade corresponde, inerentemente, uma função social. É como uma hipoteca social. Não há direitos absolutos de propriedade. Quanto à terra, é um bem público. A terra está aí, há milhões de anos. Com que direito alguém chega a uma terra e se declara seu dono? Para os povos originários, é uma insanidade e um absurdo a pretensão dos “brancos” que invadem terras coletivas (dos povos indígenas) para se apropriarem delas como se fosse coisa “abandonada”, vazia, objeto a ser possuído. Terra é dom de Deus e direito de todos. Na verdade, as terras do Brasil passaram a ser bens da coroa que dava sesmarias de terras para o usufruto de donatários. Terras que não fossem cultivadas pelos donatários dentro de certo prazo, retornavam para a coroa. Eram as chamadas “terras devolutas…” Tudo mudou com a Lei de Terras, de 1850, que (traduzindo para a lei a nova mentalidade capitalista) estabeleceu que a única forma legítima de adquirir uma terra era através de um ato de compra. Os ocupantes de terras encontraram formas de transformarem as posses em propriedades, imensas propriedades. O latifúndio brasileiro tem origem obscura, muito parecida com a legalização de um roubo.

Terra como direito absoluto, um absurdo

Tudo isso pouco tem a ver com ética cristã. O sentido original da propriedade individual era o de possibilitar a todos o acesso a um mínimo de bens necessários para a vida, um espaço de autonomia e de liberdade – e a garantia que esses bens necessários não fossem usurpados por alguém mais forte. Em nossa sociedade, a propriedade tornou-se o “direito” de você se apropriar do máximo de bens, com exclusão dos outros. É um direito “absoluto”. Outro absurdo.

Numa visão cristã, como explicaram os bispos do Brasil no Documento “Igreja e problemas de terra”, a terra a é um dom de Deus destinado a todos, e não a uns poucos. A lei deve facilitar seu acesso para o maior número possível de pessoas ou de famílias, e coibir o acúmulo de terras para fins especulativos ou como forma de ostentação de poder, ou ainda como mera reserva de valor.

IHU On-Line – Quais são os principais preceitos da propriedade da terra na concepção cristã?

Martinho Lenz – São poucos, mas de grande sabedoria: a terra é dom de Deus e direito de todos. É a aplicação do princípio básico da destinação universal dos bens. A terra é um meio para gerar outros bens, necessários para a vida, não um fim si (não se pode “possuir por possuir”). Sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social. Ninguém tem o direito de acumular terras que faltam para garantir a vida e bem estar dos que trabalham na terra. A terra deve ter cuidada e preservada da degradação, para o bem das gerações presentes e futuras. Terras mal adquiridas e mal usadas devem retornar ao uso comum. Devem ser desapropriadas por interesse público. Para um aprofundamento da doutrina cristã sobre a propriedade e sobre a reforma agrária, pode-se consultar a coleção de Temas da Doutrina Social da Igreja, em três cadernos, que a CNBB lançou em 2004-2006, sobre 24 assuntos importantes da ética social, no contexto brasileiro e latino-americano.

IHU On-Line – A economia foi feita para a pessoa humana, e não a pessoa humana para a economia. Como essa premissa nos ajuda a entender o conceito de propriedade e sua função social a partir do ponto de vista cristão?

Martinho Lenz – O direito à vida e a uma vida digna é anterior a qualquer forma de propriedade. Baseada nesse princípio, a ética cristã afirma que há um direito de acesso aos bens necessários a uma vida digna; e que, em caso de necessidade, todos os bens são comuns. Cessam os direitos privados e entra o interesse público, social, coletivo. Entra em função a solidariedade e a cooperação. Mas esse interesse público também se expressa nas formas legítimas de propriedade, que são resultados do trabalho remunerado e fruto do esforço de cada um. A possibilidade de acesso aos bens através de trabalho e do espírito inventivo é um estímulo à laboriosidade, ao esforço para produzir com eficiência. A geração de bens, tanto de consumo como de produção, é benéfica para todos. Uma sadia competição (emulação), e não a competição desenfreada, destruidora de pessoas, relações e recursos, é boa e promove o desenvolvimento. Uma sadia competição também pode contribuir para o menor desperdício e o maior cuidado com o meio ambiente.

IHU On-Line – Em que aspectos a economia global contribui para o desvio do real sentido da propriedade?

Martinho Lenz – Uma distorção deletéria, que se difundiu na economia globalizada, foi a prevalência do capital financeiro sobre o capital produtivo. Criou-se um sistema paralelo, autônomo, de especulação financeira, sem os devidos controles. As bolhas de riquezas fictícias geraram ganhos virtuais, que se desfizeram com a mesma rapidez com que foram geradas, arrastando consigo famílias e instituições. Mais uma vez, isso nada tem a ver com o conceito cristão de propriedade de bens, adquiridos através de um trabalho honesto e justamente remunerado.
 
IHU On-Line – Se a Terra foi dada a todos os homens, como compreender o paradoxo da a sua apropriação a partir da propriedade privada?

Martinho Lenz – “A terra foi dada a todos e não somente aos ricos” (São Basílio ). No sentido mais profundo, toda propriedade é um direito de dispor e de gerir determinados bens. Quanto ao uso, como já disse Santo Tomás de Aquino , “o homem não deve ter as coisas como próprias mas como comuns, de modo que facilmente dê participação delas aos outros quando necessitam delas”. Possuir algo não dá direito a abusar, a reter (especular) e acumular. A partir de uma visão cristã da propriedade, toda acumulação de bens ociosos é ilegítima e imoral. As terras ociosas estão dentro deste conceito.

IHU On-Line – Em que circunstâncias o Estado pode desapropriar terras ociosas ou mal utilizadas?

Martinho Lenz – Embora não tenhamos uma lei de Reforma Agrária no Brasil (há leis esparsas, parciais, programas de assentamentos rurais) o Estado brasileiro dispõe de alguns instrumentos que lhe permitem intervir na propriedade rural (na Constituinte de 1988, a bancada ruralista não conseguiu bloquear uma proposta global de reforma agrária e agrícola, mas não conseguiu que se aprovassem alguns dispositivos que permitem desapropriações de terras). O artigo 184 da Constituição de 1988 permite à União Federal desapropriar por interesse social para fins de reforma agrária o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante justa indenização. Estabelece quatro condições a serem cumpridas em função do interesse social: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, com reserva florestal legal; observância da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Lei de 1991 (nº 8.257) determina a expropriação imediata e destinação à Reforma Agrária de glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas, sem qualquer indenização ao proprietário.

IHU On-Line – Qual é a função do Estado em relação à propriedade?

Martinho Lenz – Função do Estado é regular o acesso à terra e seu devido uso, dentro do ordenamento jurídico democrático e no interesse do bem comum. É facilitar o acesso à propriedade, à “terra de trabalho”, para todos os que queiram e saibam trabalhá-la, coibindo as diversas formas de apropriação indébita de terras, como é a grilagem e a especulação (a transformação de terra em instrumento de lucro, “terra de negócio”). Recordemos que esses conceitos foram usados pelos bispos do Brasil no documento votado na Assembleia Geral de 1980, “Igreja e Problemas de Terra”.

Em vista do bem comum, caberia ao Estado brasileiro a função maior de ordenar a ocupação da terra, promovendo a utilização produtiva de terras ociosas ou abandonadas, coibindo o desmatamento irracional e predatório, sobretudo na Amazônia. E fazendo cumprir as leis existentes, criadas para regulamentar os dispositivos da Constituição sobre a terra rural. Por exemplo, a de Política Agrícola, de 1991, e a Lei Agrária, de 1993, que fixam os critérios de uma terra produtiva; ou ainda a lei que regula o Imposto Territorial Rural (ITR, lei nº 8.847, de 1994), que estabelece a taxação pelo critério da progressividade: quanto menos produtiva uma terra, mais imposto deveria pagar. Isto em teoria… Infelizmente, essa lei tem pouca aplicação prática devido ao uso de subterfúgios e da influência política. Seria um instrumento muito eficaz para promover redistribuição da terra, penalizando os latifúndios improdutivos e forçando-os a entregar suas terras a quem as possa trabalhar.

Daí a conclusão: só haverá mudança efetiva no acesso à terra mediante pressão popular, através de campanhas como essa da limitação do tamanho da propriedade rural e da ação organizada dos movimentos populares. Como diz o documento 69 da CNBB, Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, de 2002: “Só prevalecem na agenda da política social os direitos respaldados pela consciência da cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados” (n. 52)
 
 
16 agosto
 
Reforma agrária e limitação da propriedade: requisitos para justiça no campo.

Entrevista especial com Jacques Alfonsin

  
Vantagens sociais, políticas e econômicas para a produção agrícola. Esses seriam os pontos positivos trazidos pela reforma agrária no Brasil, junto da limitação da propriedade da rural. “Não havendo limite para a expansão da propriedade da terra, não há limite, igualmente, para o crescimento da pobreza da população sem terra”, acrescentou o advogado Jacques Alfonsin na entrevista que concedeu à IHU (instituto humanitas da Unisinos- São leopoldo=-RS) por e-mail. Além disso, caso essa limitação não seja colocada em prática, a reforma agrária não passará de uma “mera” hipótese.

Ele analisou, também, os efeitos perversos que a mercantilização da terra provoca em nosso meio-ambiente, destacando que jamais o latifúndio tomou em conta “que, além da relação de pertença do proprietário com o seu bem, o direito de propriedade da terra tem de respeitar o seu destino”.

Segundo Alfonsin, há uma desproporção entre as benesses oferecidas pelo Poder Público ao agronegócio, sobretudo ao exportador, comparativamente àquelas destinadas à agricultura familiar. Tal postura reflete uma opção política que “se assemelha ao velho e perverso modelo colonizador que nos oprimiu no passado e ainda deita suas raízes nos dias de hoje”.

Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e publica, periodicamente, seus artigos nas Notícias do Dia <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=34168> na página do IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o contexto histórico do surgimento da propriedade privada da terra?

Jacques Alfonsin – Como o ordenamento jurídico brasileiro ainda conserva muito da sua principal fonte histórica e mais remota, que é a do Direito Romano, o surgimento da propriedade privada da terra também guarda afinidade com o tratamento jurídico que aquele Direito dava a esse mesmo bem. Lá, o direito de usar e abusar da terra, “contanto que a razão e o direito permitissem”, desdobrou-se na história, de regra, muito sem razão e pouco ou quase nada de justiça. Cícero, à época em que vigia tal direito, já denunciava os efeitos nefastos que ele geraria.

Para ele, a propriedade privada da terra somente poderia ser respeitada no que bastasse ao trabalho e ao consumo dos seus proprietários. Esse tipo de crítica, além de antecipar, em séculos, a racionalidade e a conveniência do plebiscito agora em campanha no nosso país, constitui evidente censura às características opressoras que o sistema capitalista impôs, mais tarde, e que ainda está em vigor hoje, como se refletisse um processo civilizatório superior e mais humano. O sentido de propriedade privada, então, não seria igual ao da propriedade particular, somente, como hoje conhecemos. Mas seria, isto sim, o de privada de outra serventia, isto é, de que ela não deveria ultrapassar a medida indispensável à satisfação das necessidades vitais das pessoas proprietárias. Isso demonstra que o supérfluo e tudo o que excedesse tal medida, já requereria outro tratamento jurídico.

Não é de se duvidar que tal concepção de direito tenha influenciado Proudhon e Rousseau (Cf.: O que é a propriedade? e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, respectivamente). O primeiro, quando afirmou que, assim como a terra, também a água, o ar e a luz são coisas comuns não porque inextinguíveis, mas porque indispensáveis. O segundo, quando bradou, referindo-se a quem contrariasse o primeiro homem que, cercando um terreno, falou “isto é meu”: “Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: Evitais ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém”. Esse “ninguém”, à luz do Direito Moderno, bem poderia ser traduzido como “comum”.

IHU On-Line – Qual é a necessidade e a importância de se estabelecer um limite para a propriedade da terra?

Jacques Alfonsin – A necessidade deriva dos efeitos que um direito com potencial de expansão ilimitada pode causar ao povo e à terra. Ao primeiro, pelo fato de que, com a concentração progressiva da propriedade individual sobre esse bem da vida, o seu poder de exclusão diminui progressivamente também a disponibilidade de espaço-terra para a presente e para as futuras gerações. À segunda, pelos danos que a sua exploração predatória já causou, causa e ainda causará ao meio-ambiente, à biodiversidade que a natureza criou em favor do ar, das águas, da flora e da fauna. Daí a importância de se estabelecer um limite para esse poder expansionista e de exclusão que o direito de propriedade tem, por sua própria natureza, não prosseguir escravizando terra e gente.

IHU On-Line – Limitar a propriedade da terra seria um elemento importante para promover a reforma agrária brasileira? Por quê?

Jacques Alfonsin – Sem o estabelecimento de um limite de terra titulada por domínio particular, a reforma agrária tende a se perpetuar, seja como mera hipótese (como já está acontecendo atualmente, tão modestos são os seus resultados), seja como solução efetiva para o problema da mais justa partilha da terra. Não adianta essa reforma se preocupar apenas com os efeitos econômicos e sociais de um determinado tipo inadequado de uso e exploração da terra – aquele que o latifúndio desenvolve, com raras exceções, por exemplo – sem que as causas dessa forma de extensão do espaço físico territorial que ela comporta fiquem imunes à utilidade social e à vigilância pública indispensáveis às garantias devidas, de forma particular, aos direitos humanos fundamentais de alimentação e moradia para todo o povo. Entre tais causas se encontra, justamente, a licença legal indiscriminada concedida a quem, por sua fortuna, não considere nenhum limite legal para aquela extensão.

IHU On-Line – O que mudaria no mapa da produção agrícola brasileira com a limitação da propriedade da terra?

Jacques Alfonsin – A produção agrícola receberia vantagens sociais, políticas, e econômicas. Sociais, porque facilitaria o acesso das pessoas pobres à terra, coisa que, de regra, somente acontece com quem, por já ser proprietário de terra, tem crédito facilitado, dinheiro e, consequentemente, poder de estender a sujeição do seu direito (!) a mais terra; políticas, porque o território do país, melhor partilhado e distribuído entre seus próprios filhos e filhas, teria mais chance de resistir à verdadeira desterritorialização que está sofrendo com o avanço das empresas transnacionais sobre ele, interessadas apenas na terra enquanto mercadoria; econômicas, porque a mudança do destino atualmente prioritário que nossa terra dá ao agronegócio exportador – que prefere mandar para fora daqui o fruto da terra que falta à grande parte do nosso povo – abriria maior possibilidade de um consumo de massa, acessível à maioria, ampliando a tendência atual de a propriedade familiar rural alimentar o povo.

IHU On-Line – Com tantas terras improdutivas no Brasil, como podemos compreender que ainda existam agricultores que não têm onde plantar e viver?

Jacques Alfonsin – Produtivos ou improdutivos os espaços físicos (terra), eles seriam mais do que suficientes para todos, brasileiros e brasileiras, de modo particular àqueles sem terra. A economia capitalista, todavia, só reconhece a necessidade alheia na medida em que ela possa comprar a sua satisfação. Entre os tipos de economia, há o do sempre mais é o melhor (típico do capitalismo), chamado de crematística (do grego, açambarcamento de riquezas por prazer, puramente especulativo, constituindo reserva de valor, indiferente aos efeitos que isso possa causar) e o do sempre garantir o suficiente para todos os membros da comunidade (típico da economia solidária). Ao primeiro, corresponde o chamado produtivismo, uma espécie de exploração da terra indiferente ao futuro dela, mesmo que esse seja a sua morte. Ao segundo, corresponde a produtividade, ou seja, uma espécie de uso desse bem, que preserve todo o potencial de vida que ele comporta. Esse tipo, como acontece com a palavra solo, também traduz mais adequadamente a etimologia da palavra economia (oikos, do grego, casa; nomos, norma, regra). A gente esquece com facilidade que a própria etimologia da palavra solo traz em si a sua finalidade prioritária. Solo tem a mesma raiz de sola, de sal e de sala, como a nos advertir de que a finalidade primeira de sua posse (não necessariamente propriedade) é a preservação da vida e dos meios para que essa se conserve, como a comida e a casa.

IHU On-Line – Qual é a relação que existe entre a criminalização dos movimentos sociais, como o MST, e a demora na realização da reforma agrária?

Jacques Alfonsin – É princípio elementar de qualquer legislação que a todo o direito corresponde a possibilidade, a garantia de sua defesa. Uma das maiores incongruências que a interpretação dada ao nosso ordenamento jurídico é a de que todos os direitos que a pobreza, por si só, atesta como violados (falta de comida ou de casa para ficar com os exemplos mais visíveis) não são só considerados como infringidos.

Então, o país vive esse paradoxo. Não havendo limite para a expansão da propriedade da terra, não há limite, igualmente, para o crescimento da pobreza da população sem terra, exatamente aquilo que a reforma agrária visa remediar, com base, inclusive, na Constituição Federal. Mesmo que, em desespero, como acontece com agricultores sem terra, sejam forçados a apelar para a justiça de mão própria, ocupando terras, isso lhes é imputado como crime.

Entretanto, a pré-exclusão da ilicitude de tais gestos encontra apoio implícito e explícito em mais de uma disposição do Código Civil e do Código Penal. Eu não tenho conhecimento de que algum latifundiário brasileiro, inclusive grileiro, tenha sido denunciado ou condenado criminalmente, por exemplo, pelo fato de interpretar e praticar a seu modo a justiça de mão própria (!), descumprindo com a obrigação de garantir função social ao seu direito de propriedade sobre terra, quando aberrações como essas, por si sós, constituem crime, no mínimo, contra a preservação do meio-ambiente e a economia popular.

IHU On-Line – Qual a importância da participação popular no plebiscito de setembro?

Jacques Alfonsin – Além da pressão política que o plebiscito deve exercer sobre os poderes públicos, ele pode alcançar outros efeitos nada desprezíveis em favor do povo trabalhador e pobre do nosso país. Primeiro, o de se constituir em mais um fator de conscientização e de organização dos movimentos populares, impulsionando antigas e novas ideias-força em favor de novas conquistas traduzidas em efetivas garantias de seus direitos humanos fundamentais; segundo, provar, mais uma vez e de público, em que medida a economia solidária da propriedade familiar rural é muito mais eficaz em favor da alimentação e da moradia do povo, do que a imposta pelo latifúndio, especialmente o do agronegócio exportador; terceiro, ampliar o empoderamento das reivindicações das populações sem terra, dos pequenos proprietários e proprietárias rurais, das comunidades atingidas por barragens, em favor da reforma agrária, atrasada em décadas pela força contrária da Confederação Nacional da Agricultura – CNA e da bancada ruralista no Congresso Nacional.

IHU On-Line – Há uma expectativa de resultado desse plebiscito?

Jacques Alfonsin – O otimismo das organizações empenhadas no plebiscito é muito grande. Intensificando-se a campanha em favor de mais de um milhão e meio de assinaturas (veja-se como proceder no sítio do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo – FNRA), durante a primeira semana de setembro, já no dia 7 daquele mês espera-se contar com esse número. Há de se convir que, em ano de eleições, isso não é pouca coisa. A pressão popular em favor daquilo do que hoje já é lei, como a da Ficha Limpa <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=34262> , por exemplo, autoriza esperarem-se resultados semelhantes àquela iniciativa, condizentes com as urgências que o combate à injustiça social reinante no campo está a exigir.

IHU On-Line – Quais são os maiores disparates na concentração de terras no Brasil?

Jacques Alfonsin – As estatísticas que refletem o último censo agropecuário do país demonstram distorções inaceitáveis e, para nosso pesar, refletindo históricas injustiças. Além dos efeitos perversos que a mercantilização da terra provoca ao meio-ambiente do país, o latifúndio jamais levou em consideração que, além da relação de pertença do proprietário com o seu bem, o direito de propriedade da terra tem de respeitar o seu destino. Se a pertença permite ao titular dela usar e gozar da terra própria, isso não pode ir ao ponto de, pelo destino dado aos seus frutos, tornarem-se nulos todos os efeitos jurídicos que a soberania do povo impõe. A terra não é somente dos proprietários. Como fonte de vida para todos, a desigualdade que impera hoje, medida entre um pequeno número de proprietários (pouco mais de 02 %) titulando mais de 40% do território brasileiro, não só escandaliza como gera em todo o povo sem terra uma justificada indignação ética, por si só legitimadora, até, de desobediência civil.

IHU On-Line – Por que há tanto incentivo ao agronegócio quando a maior parte da produção de alimentos o Brasil é feita pela agricultura familiar?

Jacques Alfonsin – As forças econômicas e políticas que os latifundiários têm, com influência direta sobre o Poder Público e a mídia, criam todo um ambiente ideológico em seu favor, a ponto de neutralizar pressões sociais contrárias que, entretanto, representam o melhor para o povo e a terra. Se a grande propriedade rural não fosse danosa ao povo e à terra, a Constituição Federal não teria previsto um capítulo inteiro dos seus dispositivos dedicados à reforma agrária. Um exemplo do mal que esse tipo de poder e influência tem pode ser dado pelas sucessivas CPMIs que são criadas no Congresso Nacional, as quais, mesmo não obtendo prova das suspeitas que ele levanta contra o MST e as organizações que o apóiam. Ainda que pouco ou nada encontrem de ilicitude nessas iniciativas, obtém os efeitos perversos que as inspiram por que condenam, de fato, toda a rebeldia justificada das populações sem terra, através dos meios de comunicação social que manipulam. A desproporção existente entre as benesses que o Poder Público oferece ao agronegócio, especialmente o exportador, quando comparadas com o que merece a propriedade familiar, sinaliza uma opção política que, guardadas as proporções históricas, se assemelha ao velho e perverso modelo colonizador que nos oprimiu no passado e ainda deita suas raízes nos dias de hoje.

IHU On-Line – Quais são os maiores problemas ligados ao latifúndio?

Jacques Alfonsin – Se não fossem suficientes aqueles já apontados nas respostas às perguntas anteriores, um dos maiores é o da tradição cultural que ele impõe, especialmente ao povo pobre menos conscientizado, sobre a herança escravagista e opressora que marcou a sua implantação no nosso país. A senzala ainda remanesce hoje na forma do trabalho escravo, cuja abolição por sinal, projetada há quase uma década, está barrada no Congresso Nacional, justamente, por ter sido a política dos titulares dessa forma atrasada e cruel de concepção da terra e da gente da terra. Ninguém ignora o fato de que, onde predomina o latifúndio brasileiro, predomina também o atraso, o analfabetismo e a indigência de quantas pessoas nele trabalham ou dele dependem, direta ou indiretamente.

IHU On-Line – O senhor acha a medida de módulos fiscais justa? Por que ela varia tanto de Estado para Estado?

Jacques Alfonsin – Os módulos fiscais não passam de ser a régua física do tamanho mais adequado de uso e exploração da terra. A natureza, justamente por sua biodiversidade, abre um leque incomensurável de possibilidades abertas ao uso mais razoável do solo. Assim, não é possível se comparar a forma topográfica e de clima da serra gaúcha com a da campanha, por exemplo. Tudo bem como o próprio Estatuto da Terra dispôs: uma terra apropriada à produção de hortifrutigranjeiros não pode ter as mesmas características e o mesmo tamanho de uma terra onde se cria o gado. Daí que o Grau de Eficiência na Exploração – GEE, comparado em cada terra rural do país, titulada ou não, como o Grau de Utilização da Terra – GUT, facilita a qualquer agricultor ou criador de gado, usar da melhor forma possível o seu imóvel, inclusive no que se refere à sua produção e função social. Esses graus, como se sabe, estão congelados, no que se refere à sua produtividade, desde a década de 1970 do século passado e, por incrível que possa parecer, a oposição latifundiária encastelada no Congresso Nacional não permite a sua revisão, prevista como devendo ser feita periodicamente no próprio Estatuto da Terra. Tudo deve ficar como está, como se o uso e a exploração da terra, daquele período para cá, não tivesse se beneficiado de todos os progressos agronômicos, de todas as técnicas agrícolas de melhor amanho desse bem. Para quem tanto brada contra as populações sem terra por desobedecerem lei (!) aí está uma prova de que, dependendo do lado desta desobediência, ela deve passar a ser considerada virtude.