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bilancio del pontificato di Giovanni Paolo II visto dal Brasile




Balanço de um pontificado
É evidente que João Paulo II restaurou a Igreja. Mas qual Igreja? É claro
que fortaleceu o lugar da Igreja na sociedade. Mas qual lugar?
François Houtart, Diplo

A visão de um homem idoso, cansado, doente e que, apesar de tudo, continua a
assumir uma tarefa esmagadora, desperta um sentimento de respeito, de
simpatia ou de piedade. O carinho de multidões imensas e populares em tantos
países do mundo não deixa de ser impressionante. Uma personalidade que alia
amplos conhecimentos, o domínio de numerosas línguas, um componente
esportivo, uma real coragem física, uma espiritualidade profunda, uma grande
força de convicção e a fidelidade na amizade, suscita a admiração.
Entretanto, um balanço exige outras perspectivas, um outro tipo de análise.

Reconstituir algumas das linhas-mestras do pontificado de João Paulo II não
é uma tarefa simples, considerando-se o tempo passado no governo da Igreja
Católica (quase um quarto de século), as quase cem viagens internacionais,
mais ou menos uma dúzia de encíclicas, incontáveis discursos, inúmeros
encontros com personalidades, beatificações e canonizações às centenas. E
tudo isso numa época da história que viu o Consenso de Washington1 orientar
a economia mundial para o neoliberalismo com suas catástrofes sociais, o
muro de Berlim desabar, o pensamento único se impor e os movimentos de
protesto florescerem em escala mundial, sem falar do ataque terrorista
contra os Estados Unidos e das guerras que fortalecem o controle do sistema
mundial dominante.
Restauração doutrinária, moral e institucional
Ao assumir o comando da Igreja Católica, João Paulo II se atribuiu uma dupla
missão: restaurar uma Igreja abalada pelo Concílio Vaticano II e fortalecer
a presença da Igreja na sociedade para que pudesse realizar sua tarefa de
evangelização.

O cardeal Karol Wojtyla participou ativamente do Concílio Vaticano II2 .
Partidário da modernização da imagem da Igreja Católica, apoiou muitas
reformas aprovadas pela assembléia dos bispos. No entanto, de sua Polônia
natal, observou com preocupação as conseqüências do Concílio sobre uma
Igreja que se reformava em profundidade, e não sem traumas e conflitos
internos. Próximo da Opus Dei3 , que o abrigara durante várias de suas
viagens ao exterior, lançou um olhar de reprovação não só sobre alguns
excessos litúrgicos (introdução de textos ou de músicas profanas, entre
outros), mas também sobre inúmeras aplicações concretas das decisões
conciliares. Suas convicções eram reforçadas pelo vínculo com o catolicismo
polonês, sólido, mas sempre simplista em seu conteúdo, vigoroso em sua
espiritualidade marcada pelo culto à virgem Maria, rígido em sua moral,
culturalmente hegemônico em sua sociedade, cimento da nação e alma da
resistência ao comunismo. Tudo iria levar o eleito do conclave a uma
restauração doutrinária, moral e institucional da Igreja Católica4 .
Interrompendo o diálogo com a Ásia
No plano doutrinário, quase todos os assuntos foram abordados - por ele
mesmo, ou pelos órgãos da Santa Sé: a fé, o magistério e a autoridade da
hierarquia eclesiástica em termos de doutrina, o colegiado entre os bispos
para o funcionamento da Igreja universal, a liturgia, o sacerdócio, o papel
das mulheres na Igreja, o ecumenismo e as relações entre Igrejas cristãs, as
religiões não cristãs, a doutrina social... Definições interessantes
aparecem ao lado de advertências, de apelos doutrinários e mesmo de
condenações explícitas. Foram muitas as freadas, acompanhadas por medidas
disciplinares cada vez mais constrangedoras, ao invés do acompanhamento
pastoral de um difícil processo de reformas para que a Igreja pudesse
transmitir melhor a mensagem do Evangelho num mundo complexo.

As adaptações litúrgicas começadas em várias Igrejas locais da Ásia, por
exemplo, e especialmente na Índia, visando a uma expressão cultural mais
flexível da fé, foram interrompidas. O documento Dominus Jesus sobre a
função salvadora universal de Jesus pôs fim à tentativa de repensar a
relação com as grandes religiões do Oriente: esse texto foi interpretado por
alguns dirigentes religiosos ou políticos asiáticos como uma justificativa
do proselitismo em sociedades que recuperavam, com dificuldade, sua
identidade cultural, particularmente pelo viés da religião. Vários teólogos
sofreram condenações, proibições de ensinar ou de publicar, e um deles,
Tissa Balasuriya, do Sri Lanka, foi excomungado por haver publicado um livro
bastante ambíguo sobre a virgindade de Maria e sobre o conceito de pecado
original.
A repressão à teologia da libertação
É verdade que, em matéria de relações com as outras confissões cristãs e com
outras religiões, houve algumas manifestações impressionantes, como os
encontros de Assis, em 1986 e 2002, o jejum do último dia do Ramadã, em 2001
etc. Mas a intransigência doutrinária e os obstáculos a colaborações mais
institucionais, em especial com o Conselho Mundial das Igrejas, colocaram
limites intransponíveis a certos avanços. Os pedidos de perdão pelos erros
de membros da Igreja Católica - no tempo das Cruzadas, da Inquisição, ou
ainda por comportamentos racistas ou anti-semitas - nunca questionaram as
responsabilidades da própria instituição5 .

O colégio episcopal, um dos pontos fortes do Concílio Vaticano II, foi
claramente subordinado por João Paulo II à autoridade romana. Os sínodos
gerais ou continentais transformaram-se, com freqüência, em estúdios de
gravação da linha pontifícia, ou em lugares de desabafo sem grandes
conseqüências. O documento final de cada um devia ser aprovado pelo papa
antes da publicação e, em muitos casos, até foi modificado6 .

A teologia da libertação foi objeto de uma repressão específica. Nascida na
América Latina, teve expressão também na África, sobretudo entre os teólogos
protestantes, na Ásia, na Índia, nas Filipinas e na Coréia do Sul. Reflexão
sobre Deus, como toda teologia, seu ponto de partida era a situação dos
pobres e dos oprimidos, explicitando, assim, o caráter contextual, o que
outras correntes geralmente se recusam a fazer, dissimulando, desse modo, a
relatividade do discurso.
João Paulo II decreta fim do marxismo
Inspirando-se no Evangelho, a teologia da libertação exigia, na complexidade
das situações sociais contemporâneas, a mediação de uma análise social para
estabelecer claramente seu ponto de partida. Mas esse pensamento ia muito
além do campo da ética social. Com os olhos dos explorados, encontrava o
sentido da pessoa de Jesus, recolocado no contexto histórico da Palestina de
seu tempo. Desenvolvia uma espiritualidade e expressões litúrgicas que
compreendiam a vida dos pobres. Lançava um olhar severo sobre uma Igreja
muito freqüentemente comprometida com os poderes opressores. Falava de
libertação no presente como expressão do amor de Deus por seu povo. Em
resumo, era perigosa para a ordem - tanto social quanto eclesiástica.

A reação romana foi muito dura. Era-lhe fácil acusar de marxismo essa
corrente teológica porque se baseava na existência de estruturas de classe.
Tal perspectiva, dizia o cardeal Joseph Ratzinger, responsável pela
Congregação da Doutrina da Fé, levava diretamente ao ateísmo. Muitos
teólogos foram, conseqüentemente, proibidos de ensinar e de publicar. Os
centros educacionais receberam ordem de proibir qualquer ensino que falasse
de teologia da libertação. Esta encontrou abrigo junto a centros de estudos
ou de formação ecumênicos e em universidades laicas. O próprio João Paulo
II, em visita à Nicarágua em 1996, declarou que a teologia da libertação não
tinha mais razão de ser, pois o marxismo estava morto.
A "globalização da solidariedade"
Quanto às questões morais, é conhecida a insistência do papa sobre o
respeito à vida, mesmo antes do nascimento, sua oposição radical ao aborto,
à contracepção, ao divórcio, à eutanásia, mas também à pena de morte.
Logicamente, o positivismo científico, os poderes econômicos genocidas e o
relativismo de um certo pensamento pós-moderno põem a vida em perigo.
Entretanto, a recusa pontifícia em levar em consideração as condições
sociais e psicológicas concretas dos seres humanos, o apego a uma filosofia
da natureza ultrapassada pelos conhecimentos contemporâneos, as
conseqüências dramáticas de algumas posições dogmáticas, como no caso da
Aids na África, levaram a Igreja Católica a perder uma boa parte de sua
credibilidade.

A doutrina social continuou como ponto privilegiado da atenção de João Paulo
II. São incontáveis os documentos sobre o assunto. Em nome do Evangelho,
condenou do modo mais duro os abusos e os excessos do capitalismo,
denunciando mesmo, em Cuba, o neoliberalismo e seus efeitos perversos. Mas
se, na encíclica Centesimus Annus, condenava o socialismo em sua essência -
porque portador do ateísmo -, estigmatizou o capitalismo selvagem por suas
práticas, mas não em sua lógica. Ora, a referência desse documento a uma
"economia social de mercado" omitia a indicação de que os mesmos agentes
econômicos de tal modelo adotam práticas "selvagens" no hemisfério Sul e na
Europa Oriental. Donde os apelos freqüentes e insistentes à "globalização da
solidariedade" que não desembocam numa denúncia das causas profundas da
pobreza e das desigualdades. Aliás, um dos instrumentos de elaboração e de
difusão de sua doutrina social é a Comissão de Justiça e Paz, instaurada
pelo Vaticano II: a designação, no ano de 2000, de Michel Camdessus,
ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), para integrá-la como
conselheiro, é suficiente para pôr em dúvida que ela possa ser o porta-voz
dos pobres e dos oprimidos...
A ascensão da Opus Dei
Para garantir o êxito de seu projeto prioritário - a restauração doutrinária
e moral - João Paulo II precisava de uma instituição que o divulgasse. Sua
política de nomeações episcopais orientou-se nesse sentido. Em muitas
dioceses, os novos bispos começaram, sob inspiração da Santa Sé, a controlar
os centros de formação, a desmantelar o trabalho pastoral de seus
predecessores, a introduzir congregações religiosas e organizações católicas
conservadoras. Na América Latina, o Conselho Episcopal Latino-Americano
(Celam) -, na vanguarda da renovação e organizador, em 1968, da Conferência
de Medellín para a aplicação do Concílio Vaticano II no continente - foi,
pouco a pouco, transformado em órgão de restauração. As conferências
episcopais foram reorientadas pelo viés das novas nomeações. Centenas de
dioceses, no mundo inteiro, viveram transições pastorais difíceis e que,
amiúde, desembocaram em dramas pessoais entre os que haviam acreditado numa
Igreja profética e numa instituição mais humana. Somente algumas dioceses,
com uma cristandade mais antiga e com a autonomia preservada, puderam frear
a vaga impetuosa das nomeações conservadoras7
Em 1982, quatro anos após a eleição de João Paulo II, a Opus Dei adquiriu o
status de prelatura pessoal, acima da jurisdição dos bispos. Seu fundador
foi canonizado em 2002, apenas 27 anos depois de sua morte. Vários de seus
membros chegaram ao episcopado, particularmente em dioceses importantes, e
alguns, ao cardinalato. Sua influência se fez sentir sobretudo na
administração central da Igreja Católica - na Cúria. Seus membros ocupam
cargos importantes em numerosos setores e beneficiam-se de "promoções"
internas. A "Obra de Deus" poderia vir a desempenhar um papel importante na
designação do sucessor do papa atual.
Escândalos e eminências pardas
João Paulo II também fortaleceu a Cúria Romana. Ora, a manutenção desse
aparelho exige recursos importantes que a contribuição dos fiéis não basta
para assegurar. Mas a Santa Sé dispõe de um patrimônio considerável, graças,
especialmente, aos acordos de Latrão (1929), através dos quais a Itália
fascista indenizou o Vaticano pela perda dos antigos Estados pontifícios.
Esse considerável capital imobiliário e financeiro produz rendas
importantes. Mas as instituições bancárias do Vaticano viveram, sob o atual
pontificado, escândalos retumbantes, dentre os quais o do Banco Ambrosiano8
, que custaram centenas de milhões de dólares à Igreja Católica. Muitos
negócios violentamente contrários ao espírito do Evangelho, mas sobre os
quais o público sabe muito pouco: todos os poderes - econômicos, políticos,
judiciários e das comunicações - se aliaram para abafá-lo, com medo de pôr
em perigo uma instância moral que, em sua visão, constitui uma garantia da
ordem social.

Bispo de Roma, João Paulo II deveria ter-se aposentado aos 75 anos, como
todos os bispos são convidados a fazer depois do Vaticano II: sua recusa
fortaleceu o poder de uma administração cada vez mais conservadora. Novo
"prisioneiro do Vaticano", o papa torna-se a vítima de uma Cúria cujos
grandes tenores, nomeados por ele próprio, foram tão longe na restauração,
que esta acabou provocando reações crescentes até nos meios moderados da
Igreja.
Leigos relegados a posição subalterna
A "nova evangelização" promovida por João Paulo II caracteriza-se por duas
diretrizes principais: de um lado, a da Opus Dei, que visa a evangelizar
através do poder, fazendo da espiritualidade um sinal de excelência social;
e, de outro, a dos diversos movimentos carismáticos, que são exigentes
quanto aos comportamentos pessoais, valorizam o afetivo, mas são, em geral,
pouco inclinados a integrar uma dimensão social. Em contrapartida, as
Comunidades Eclesiais de Base, nascidas na América Latina e caracterizadas
pela tomada da palavra pelos pobres e pela autogestão, foram marginalizadas
e, às vezes, até destruídas: padres que as assistiam foram transferidos, o
acesso aos locais paroquiais foi-lhes proibido e criaram-se novas, com o
mesmo nome, sob a égide clerical.
O papel dos leigos na Igreja, ainda que valorizado nos textos, foi
amplamente relegado a um plano subalterno, salvo quando se tratava de
organizações incondicionais, como a Opus Dei. Em compensação, exemplo
surpreendente, a Juventude Operária Católica Internacional (JOCI), apesar de
apoiada por várias conferências episcopais, se viu marginalizada, seu status
de organização internacional católica foi revogado e criou-se,
artificialmente, uma federação concorrente. Essas tendências se inserem num
contexto de fragmentação cultural típica, que as correntes filosóficas
refletem como uma parte das ciências humanas, da produção artística e da
busca religiosa, na qual a ênfase é posta no indivíduo. Paradoxalmente, a
época é marcada, ao mesmo tempo, pela predominância do mercado e por um
endurecimento autoritário à frente das instituições.
As forças hostis à mensagem cristã
As inúmeras viagens de João Paulo II pelo mundo revelaram, é claro, sua
energia pouco comum; foram muito apreciadas por inúmeras comunidades
populares, principalmente no hemisfério Sul, mas também - logicamente - na
Polônia e, em geral, pelos núcleos católicos fervorosos. Entretanto, mais
que verdadeiramente tomar contato com a realidade dos lugares visitados,
tratava-se, sobretudo, de difundir o pensamento romano. O evento precedeu a
mensagem. Se as visitas pontifícias provocaram emoção enquanto celebrações
coletivas, desembocaram, na maioria das vezes, num fortalecimento da ala
conservadora do catolicismo.

A restauração da Igreja Católica depois do Concílio Vaticano II traduziu-se,
pois, para João Paulo II, numa solidez doutrinária redefinida, num código
moral sem falhas e numa autoridade que pretende ser indiscutível, a serviço
de um projeto conservador no conteúdo e modernizado na forma. Tal orientação
parecia-lhe necessária para enfrentar as forças hostis da sociedade. É por
isso que tomou Pio XII como referência e abriu seu processo de
beatificação - bem como o de João XXIII, que a vox populi há muito tempo já
havia colocado nos altares.

Na encíclica Gaudium et Spes9 , o Vaticano II pensava o papel da Igreja como
inspiração moral, e não como exercício de um poder. Querer dividir as
alegrias e as esperanças da humanidade parecia decorrer de um otimismo no
limite do realismo, mas resultava de uma inspiração pragmática. O novo papa
iria, rapidamente, traduzi-la num duplo confronto contra as forças hostis à
mensagem cristã: o comunismo ateu e, depois, o secularismo ocidental.
Ação especial na Polônia e Nicarágua
Tradicional, a luta contra o comunismo fora reforçada pela proclamação do
ateísmo como "religião de Estado" nos países do Leste, mas também, de modo
mais concreto, pela repressão das liberdades e das perseguições religiosas.
Para João Paulo II, guiado pela experiência polonesa, era necessário
mobilizar os católicos para a erradicação do comunismo. Isso deveria
manifestar-se tanto no interior da Igreja - e, por isso, a condenação da
teologia da libertação - quanto fora dela, através de uma ação direta.
Onde o comunismo continuava no poder, ele estimulou a criação de um
contra-poder. Donde as visitas à Polônia, que permitiram uma mobilização
religiosa, bem como um apoio ao sindicato Solidariedade - inclusive no plano
financeiro, via Banco Ambrosiano. Onde o comunismo estava em via de tomar o
poder, era necessário arregimentar os católicos numa frente de oposição.
Donde, na Nicarágua, em 1983, o confronto com a Frente Sandinista. Em sua
homilia em Manágua, o papa condenou a Igreja popular e o "falso ecumenismo"
dos cristãos engajados no processo revolucionário. E conclamou à unidade sob
a bandeira de um episcopado particularmente reacionário (o arcebispo de
Manágua, Dom Miguel Obando y Bravo, seria nomeado cardeal após a visita
pontifícia). Essa atitude acarretou uma forte repressão eclesiástica e criou
uma profunda comoção entre os cristãos dos meios populares que tinham vindo
celebrar, ao mesmo tempo, sua revolução e a visita de seu papa.
Apelo em favor de Pinochet
A viagem a Cuba situava-se na mesma perspectiva. No espírito de João Paulo
II, a ilha era o último bastião do comunismo no Ocidente, mas em fim de
carreira. A agressividade já não seria conveniente. O estado de saúde do
papa tampouco lhe permitia isso. Na sua visão, a revolução cubana era um
parêntese na história, e não a mencionou: apenas destacou seus efeitos,
todos negativos. Ao voltar a Roma, João Paulo II declarou que sua visita
produziria os mesmo efeitos que na Polônia, dez anos antes.

A luta anticomunista não só precisava de uma Igreja forte e disciplinada,
mas exigia também uma aliança com outras forças econômicas e políticas.
Donde os numerosos compromissos com o poder norte-americano, cujos fundos
oficiais e secretos em favor do Solidariedade haviam sido canalizados por
várias organizações católicas na Europa e em Roma. Donde, também, a
tolerância em relação a regimes ditatoriais de direita, como no Chile, na
Argentina10 , nas Filipinas. Os artesãos dessas relações duvidosas foram
promovidos por João Paulo II para dirigir importantes órgãos da Santa Sé,
começando pela Secretaria de Estado. Donde, enfim, a intervenção em favor do
general Augusto Pinochet, ou, num plano simbólico, a beatificação, em 1998,
do cardeal Stepinak, próximo do regime fascista croata durante a II Guerra
Mundial.
A paz entre os povos
O segundo adversário de João Paulo II foi o secularismo ocidental,
caracterizado pelo relativismo, pelo engodo do consumo e pelo hedonismo.
Lembrou então, com veemência, os valores do amor pelo outro, da
solidariedade, da moderação no uso dos bens materiais. Porém, mais uma vez,
fez isso num quadro doutrinário e moral de tal forma rígido que a mensagem
permaneceu amplamente incompreendida e, por fim, pouco eficaz. Infelizmente,
pois a humanidade contemporânea aspira à espiritualidade, procura um
sentido, e as lutas sociais indicam um profundo desejo de justiça diante de
uma globalização econômica e cultural destruidora.

A busca da paz foi outra preocupação do papa João Paulo II. Manifestou-se
contra a guerra do Golfo, alertou contra a de Kosovo, declarou-se reservado
na do Afeganistão. Reivindicou o direito dos palestinos a um Estado. A paz
entre os povos, fundada na justiça em suas relações, foi um leitmotiv
constante. João Paulo II mostrou-se atento aos sofrimentos das vítimas, aos
povos submetidos às restrições mortíferas dos embargos: condenou os que
visavam ao Iraque e Cuba. Posições que tomou por fidelidade ao Evangelho.

Infelizmente, essa evocação de valores permaneceu quase sempre abstrata. O
papa quase não explicitou as causas reais das guerras e seus vínculos com o
imperialismo econômico. Por outro lado, a aliança concreta entre a Santa Sé
e os poderes econômicos e políticos do Ocidente continua, baseada numa
lógica institucional (a reprodução social da instituição eclesial), fazendo
com que o discurso antiguerra perca uma grande parte de sua credibilidade.
Um gigante contraditório
Nessa área, o instrumento privilegiado da Santa Sé é o serviço diplomático.
Este não é um órgão do Vaticano enquanto Estado, contrariamente ao que se
crê com freqüência, mas sim da Santa Sé, isto é, da Igreja. Desenvolvido de
modo considerável por João Paulo II, é não só seu elemento mais dispendioso,
como também o mais comprometedor do ponto de vista social e, simbolicamente,
o mais contraditório em relação à inspiração evangélica, porque sinal de
poder (privilégio de um Estado) e expressão de riqueza (a implantação das
nunciaturas ao lado das embaixadas).
Ninguém duvida que João Paulo II, o prelado esportivo e ex-trabalhador das
indústrias de Solvay, na Cracóvia, o amador de teatro e o moralista da
Universidade Católica de Lublin, o padre de espiritualidade mística e o
pastor dos Cárpatos, ficará na história como um gigante da era
contemporânea, o papa de um quarto de século que transtornou a humanidade, o
papa da globalização11 . Mas, ao querer reconstruir uma Igreja sólida num
mundo mais humano, acabou destruindo inúmeras forças vivas emergentes e
impregnadas de uma visão evangélica e profética.
Símbolo de unidade, não de poder
A luz espiritual e moral de que pretendia ser o portador transformou-se em
instância política. O governo central da Igreja, que deveria ser um serviço
ao "povo de Deus", tornou-se um aparelho reacionário, aliado de facto aos
poderes opressores. Seu apelo à justiça e à paz, ao invés de tomar a
dimensão profética - exigida pela enorme exploração, mais que nunca
globalizada - virou uma crítica sensata. Ele se apoiou não sobre a força do
símbolo, mas, sim, sobre a da autoridade. É evidente que João Paulo II
restaurou a Igreja. Mas qual Igreja? É evidente que fortaleceu o lugar da
Igreja na sociedade. Mas qual lugar?

A cristandade precisa de um papa - dizia Harvey Cox, teólogo batista, profes
sor em Harvard - mas, acrescentava, enquanto expressão simbólica da unidade,
e não como poder. A humanidade precisa de mensagens de esperança com base em
análises do real e de projetos para o futuro. Não se pode dizer que o
balanço do pontificado tenha respondido a esta dupla expectativa. Isso será
o desafio para o sucessor de João Paulo II12 que, para tal, poderá se apoiar
na esperança de uma expectativa muito grande e em forças vivas felizmente
sempre presentes em todo o planeta.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
* Diretor do Centro Tricontinental em Louvain-la-Neuve, Bélgica.

1 - Ler, de Moisés Naim, "Avatars du consensus de Washington", Le Monde
diplomatique, março de 2000.
2 - Convocado por João XXIII, o Concílio Vaticano II significou uma reforma
importante, em especial, com a constituição Lumen Gentium, que redefinia a
Igreja como "povo de Deus", e a constituição Gaudium et Spes, que
apresentava a presença da Igreja no mundo contemporâneo como sendo de
inspiração, e não de dominação. A reforma litúrgica introduziu a língua
vernácula e as funções dos leigos foram ampliadas, particularmente em
relação ao culto e aos sacramentos. O colégio dos bispos foi revalorizado
como contrapeso à administração central romana.
3 - Fundada em 1928, na Espanha, por Dom Escriva de Balaguer, a "Obra de
Deus", freqüentemente classificada como "franco-maçonaria branca", conta com
mais de 80 mil membros, na maioria leigos, em cerca de cem países. Ler, de
François Normand, "La troublante ascension de l'Opus Dei", Le Monde
diplomatique, setembro de 1995.
4 - Em 1984, o cardeal Joseph Ratzinger, nomeado por João Paulo II para
dirigir a Congregação da Defesa da Fé (antigo Santo Ofício), declarou numa
entrevista: "Depois dos exageros de uma abertura indiscriminada ao mundo,
depois das interpretações demasiado positivas de um mundo agnóstico e ateu,
[a restauração] é desejável e, aliás, já está em curso". (Jésus, Roma, 6 de
novembro de 1984).
5 - Simbolicamente, João XXIII foi beatificado no dia 3 de setembro de 2000,
ao mesmo tempo em que Pio IX, o papa do Syllabus (um documento
antimodernista que condena inúmeras liberdades, hoje aceitas), de
comportamento freqüentemente anti-semita.
6 - Como ocorreu no sínodo holandês, em 1984, quando o episcopado teve que
assinar um documento preparado pela Santa Sé.
7 - Como nas dioceses de Chur, na Suíça, com a nomeação de Dom Haas; de
Recife, com o sucessor de Dom Helder Câmara; de San Salvador, com a nomeação
de um bispo da Opus Dei como sucessor de Dom Rivera Y. Damas e de Dom Oscar
A. Romero; de Namur, na Bélgica...
8 - O Banco Ambrosiano financiava, entre outros, o regime do ditador
Anastasio Somoza, na Nicarágua. Seu diretor, o banqueiro Roberto Calvi, foi
encontrado enforcado sob uma ponte, em Londres. No dia 16 de abril de 1992,
na sentença sobre a falência do banco, o tribunal de Milão explicou os
vínculos existentes entre o banco e o Instituto para as Obras de Religião
(IOR), o banco do Vaticano, dirigido, na época, por Dom Paul C. Marcinkus,
de nacionalidade norte-americana, já marcado por outros negócios duvidosos.
Ler, de Fernando Scianna, "La Mafia au cour de l'Etat et contre l'Etat", Le
Monde diplomatique, outubro de 1982.
9 - A Igreja no mundo deste tempo.
10 - Na Argentina, o núncio na época da ditadura militar, o atual cardeal da
Cúria Pio Laghi, dirigiu-se à guarnição de Tucumán, em 1976, nos seguintes
termos: "Vocês sabem o que é a pátria, cumpram as ordens com obediência e
coragem e mantenham o espírito sereno." (La Nación, Buenos Aires, outubro de
1976). No Chile, o núncio no regime Pinochet era o atual cardeal Angelo
Sodano que, na seqüência, foi nomeado secretário de Estado. Sobre o regime,
ele declarou: "Até as obras-primas podem ter manchas; eu os convido a não se
deterem nas manchas do quadro, mas a olharem o conjunto, que é maravilhoso."
11 - George Weigel, professor na Universidade Católica de Washington,
mostrou, em sua obra, os sentimentos de João Paulo II ao longo de sua
trajetória à frente da Igreja Católica. Seu livro é um reflexo da visão do
papa sobre a Igreja e sobre o mundo (Jean Paul II, témoin de l'Espérance,
ed. Attes, Paris, 2001).
12 - Giancarlo Zizola abordou esse tema em seu livro Le successeur, ed.
Desclée de Brower, Paris, 1995. Ler, do mesmo autor, "A guerra de sucessão
no Vaticano", Le Monde diplomatique, agosto de 2001.



Publicado em Porto Alegre 2003: 20/10/2003