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Brasil :Fome Zero e segurança alimentar



20 de setembro de 2003

Patrus Ananias (*)
Linha Aberta. Brasil, 19 de setembro.


Ouvia, na minha infância, o povo do sertão dizer que raça de boi é capim.
Parafraseando os meus conterrâneos bocaiuvenses, podemos afirmar que a raça
e a dignidade de um povo começam com o direito à comida, primeiro degrau da
cidadania.
São Tomás de Aquino ensinava que a prática das virtudes cristãs pressupõe o
atendimento das necessidades materiais básicas. De barriga vazia e sentindo
as tonteiras da fome e da desnutrição, ninguém reza ou pratica a caridade e
o amor ao próximo. Vale o mesmo para o exercício das virtudes cívicas,
republicanas e democráticas.
Não se faz um país sem o povo. E não há povo, no sentido de identidade
nacional, cultural e cívica, quando parcelas enormes da população, senão a
maioria, transformam-se em bandos errantes em luta pela sobrevivência. Não
se faz o Brasil sem brasileiros. O sentimento de nacionalidade e de pátria é
vivo e recíproco: a lealdade à pátria exige como contrapartida permanente o
cuidado que esta deve a todos os seus filhos e filhas.
O objetivo único e final de qualquer planejamento e ação governamental não é
um exercício abstrato de instituições perfeitas e de cálculos aritméticos,
mas a promoção e elevação de sua gente ao melhor de suas potencialidades e
vocação. Não se faz o Brasil com fome. A fome aguda destrói a vida, enquanto
a fome crônica mata aos poucos, ao anular o cidadão para a vida em
sociedade.
O grande brasileiro Josué de Castro, no seu clássico " Geografia da Fome",
mostrava que, em 1940, a fome era um fenômeno social localizado basicamente
nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. No decorrer dos últimos sessenta
anos, entretanto, não resolvemos os problemas daquelas regiões e a carência
alimentar se disseminou geograficamente, fruto da perversa combinação da
acelerada urbanização, redução do ritmo de crescimento da economia e
crescente concentração de renda.
Anos depois da denúncia e do apelo de Josué de Castro, outro notável
brasileiro, conterrâneo bocaiuvense, Herbert de Souza, o Betinho, tocava as
chagas do desacerto nacional. Um dos maiores e mais ricos países do mundo,
com uma fantástica extensão de terras produtivas e recursos hídricos, capaz
de produzir duas, três safras ao ano, insiste em manter uma parcela
ponderável da sua população na miséria e na exclusão, negando-lhe o direito
primeiro, elementar e sagrado ao sustento e à dignidade.
O Brasil, na verdade, esquivou-se, ao longo de sua história, de desenvolver
uma política de segurança alimentar. Este conceito, presente nos fundamentos
das políticas estratégicas dos Estados Unidos, União Européia e Japão,
consiste em assegurar a cada cidadão acesso à quantidade necessária de
alimentos para garantir uma dieta adequada e compatível com os padrões
culturais da sociedade, propiciando uma vida saudável, plena e produtiva. E
resulta da combinação de políticas relativas a três vertentes: agricultura,
abastecimento e alimentação.
O governo Lula propôs-se, desde sua primeira hora, a enfrentar o problema,
através do Programa Fome Zero, que, depois das dificuldades iniciais, vem
ganhando abrangência e mostrando ser muito mais do que um programa de
assistência, mas um vetor de reorganização social e econômica.
Para acelerar sua consolidação e expansão, é importante que o Programa Fome
Zero incorpore experiências regionais que o antecederam. Em nosso mandato à
frente da Prefeitura de Belo Horizonte (1993-96), a segurança alimentar foi
uma prioridade e se traduziu nos programas Safra e Direto da Roça e na
materialização do primeiro restaurante popular do País, que atualmente
oferece refeições de qualidade a 5,9 mil pessoas por dia, ao preço de R$
1,00. Naquelas iniciativas, estavam presentes os mesmos sentimentos que
motivaram Betinho em sua cruzada contra a fome, assim como os fundamentos
filosóficos que agora norteiam a agenda pública nacional, através do
Programa Fome Zero.
Em recente visita ao restaurante, reforcei a convicção de que enfrentar a
fome é o grande desafio da cidadania. É e será obra de mobilização social e
política, para assegurar as bases de produção, distribuição e acesso à
segurança alimentar da comunidade. Esta compreensão e esta prática são as
contribuições de Belo Horizonte à grande batalha nacional contra a fome.


(*) Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG)
Publicado pelo jornal Estado de Minas em 18/9/2003