Brasil :O reformismo radical



Marco Aurélio Nogueira
Jornal da Tarde. Brasil, junho de 2003.


Deve-se atribuir ao presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno, a
mais sistemática defesa do PT como partido de esquerda. Em suas intervenções
públicas (como, por exemplo, no artigo "A esquerda e as reformas", publicado
em O Estado de S. Paulo no último dia 7/6), o ex-deputado não tem cessado de
repetir que o PT permanece firme no campo da esquerda, de onde provém e do
qual não se afastará. Por extensão, o governo Lula também estaria à
esquerda, ainda que sustentado por uma articulação de centro-esquerda.
Para ele, o PT mantém clara fidelidade tanto à luta pelos direitos de
cidadania dos mais fracos, dos excluídos e dos trabalhadores, quanto a
princípios e valores como o humanismo, a paz, a justiça social, a
solidariedade. O PT não se prende a um desenho pronto e acabado de sociedade
ideal, pois sua meta é participar de um movimento que procura encontrar
formas de produzir uma igualdade crescente sem abrir mão da democracia e da
liberdade. É uma causa em permanente construção.
O partido hoje no governo pertenceria à esquerda democrática e, com isso,
teria deixado para trás a intransigência revolucionária e o "radicalismo
estridente". Não lutaria mais pela eliminação da ordem existente, mas sim
pela hegemonia política, cultural e moral, ou seja, pela possibilidade de
dirigir ético-politicamente as mais amplas camadas da população brasileira.
Remetendo-se a Gramsci, o refinado marxista italiano que se dedicou à
renovação teórica da esquerda comunista, Genoíno concebe o controle do
governo apenas como detalhe de uma operação maior, a da conquista da
hegemonia.
Com essas formulações, Genoíno não vê outro caminho para o PT que não o do
reformismo radical. Para ele, nas sociedades capitalistas contemporâneas,
repletas de conflitos e diferenciações, ser de esquerda é propor reformas
com radicalidade, ou seja, sem romper com os compromissos fundamentais da
esquerda (a igualdade, a justiça, a democracia) e sem fazer concessões a
interesses particulares, pressões casuísticas ou privilégios. As reformas
defendidas pelo governo Lula, particularmente na área da Previdência, se
encaixariam nesse figurino.
É uma posição corajosa e contundente, merecedora de muitas reflexões. O
problema é que a política não é feita só de proposições coerentes. Nela, há
sempre um contraste entre os discursos, as boas intenções, os princípios e a
vida. O PT de hoje, por exemplo, não é idêntico ao de ontem, por mais que se
diga o contrário. Sua trajetória não foi apenas a da continuidade, mas
também a da ruptura. Ao longo dos anos, o partido se modificou, ganhou novas
expressões, reformulou seu credo político. O reformismo radical e
democrático que professa hoje é filho dessa evolução e espelha a opção
feita, anos atrás, pela chegada ao governo e pela aposta na possibilidade de
se administrar de outro modo o capitalismo, confrontando-o a partir de
dentro, não de fora.
Por ter sido forte a guinada, é de se perguntar se a direção partidária (que
é, afinal, quem elabora e implementa uma nova orientação) preocupou-se, ao
longo do tempo, em estimular, no partido, a constituição de uma cultura
política correspondente à reformulação que se empreendia.
Se não se deu a devida atenção a isso, não há porque se surpreender quando
as bases partidárias, seus militantes, simpatizantes e intelectuais se
recusam a referendar o que se passa na cúpula, isto é, na parte do partido
que está efetivamente no governo. Afinal, toda e qualquer conversão política
colide com interesses e imaginários consolidados e só se viabiliza a partir
de complexos processos de educação e persuasão.
Não há como ser de esquerda no mundo de hoje sem fazer algum tipo de pacto
com o inimigo. O capitalismo não está por um fio, nem corre risco de vida,
tanto quanto não existe uma força social categoricamente posicionada em
favor de uma nova sociedade. Por isso, é impossível chegar ao governo e se
recusar a jogar o jogo com as regras já definidas. Pensar de outro modo é
fugir do terreno da política.
Não se trata de ter paciência infinita ou refugar na crítica, em nome de um
governo que mal completou meio ano de vida. Mas sim de compreender os fatos
duros da vida e os tempos específicos da política, contra os quais são
completamente inócuas as manifestações de indignação ética, moralizante ou
filosófica.
De qualquer modo, é preciso fixar com clareza os limites do pacto com o
inimigo. Parece ser exatamente essa a dificuldade atual do PT e de seu
governo. Não se está conseguindo estabelecer até onde irá o empenho em gerir
a crise, acalmar os mercados e arrumar a casa para o take off reformador.
Sem isso, uma esquerda de governo acaba por se dissolver como esquerda de
luta. Passa a não visualizar mais qualquer ruptura ou superação, mas apenas
uma mais competente gestão do existente.




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