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Brasil Vigário: revolta e ultraje geral
- Subject: Brasil Vigário: revolta e ultraje geral
- From: "Nello Margiotta" <animarg at tin.it>
- Date: Mon, 1 Sep 2003 17:09:15 +0200
1 de setembro de 2003 Maria Eduarda Mattar Rits. Brasil, setembro de 2003. Pouco mais de um mês atrás, no dia 23 de julho, nove réus - nove policiais militares - foram absolvidos, depois de, ao que tudo indica, terem sido acusados injustamente por um outro grupo de PMs. Estes, ao fazerem, em 1995, acusações supostamente corretas sobre os reais autores de crime, foram absolvidos em 1999. A confusão que estas idas e vindas judiciais geraram não dá alento e esperança de justiça às famílias das vítimas do episódio ocorrido há dez anos. O local foi Vigário Geral, zona norte do Rio de Janeiro; as vítimas somaram 21 pessoas; o crime ficou conhecido como "chacina de Vigário Geral"; os acusados eram policiais militares; o motivo: retaliação à morte de quatro PMs na noite anterior, também em Vigário Geral; o absurdo: todas as 21 pessoas mortas eram inocentes; a impunidade: até hoje não se puniram corretamente os autores das mortes dos moradores da favela e, o que é pior, não se sabe com certeza quem são. Neste dia 30 de agosto, dez anos se completam desde que os 21 corpos foram encontrados no parque Proletário. O crime chocou a cidade, que se via cada vez mais imersa em uma onda de violência que, cerca de um mês antes, no final de julho de 1993, havia resultado na morte de oito meninos em uma outra chacina, a da Candelária. Na de Vigário o número de mortes chocou tanto quanto o modo como essas pessoas morreram e, principalmente, pelo fato de elas não terem nada a ver com as mortes dos quatro policiais, estopim do crime. Os assassinatos teriam sido executados por mais de um grupo de policiais agindo naquela noite. Um deles explodiu uma granada no interior de um bar, provocando a morte de sete pessoas. Este mesmo grupo teria também atirado contra os freqüentadores do bar, ferindo outras duas pessoas. Perto dali, outro grupo invadiu a casa de uma família de evangélicos e matou a tiros oito deles, diante de cinco crianças. Outras oito pessoas foram atacadas em ruas próximas, das quais apenas duas sobreviveram. Marco trágico A chacina de Vigário Geral foi, assim, um marco. Da violência, da morte de inocentes, da comoção e da revolta geradas na comunidade e em toda a população do Rio de Janeiro. Em decorrência disso, foi marco também da mobilização da sociedade civil, que se articulou para dizer não a crimes como aquele. O Movimento Viva Rio foi uma das iniciativas que surgiu como reação àquela onda de violência que assolava a cidade e culminou com a chacina do dia 30. Segundo Rubem César Fernandes, coordenador geral do Viva Rio, "Vigário é um marco trágico. É um marco de luta, de superação". Ele aponta como conseqüência importante da tragédia o surgimento de projetos e organizações empenhados em lutar contra a realidade violenta e prevenir que acontecimentos como aquele voltassem a fazer vítimas inocentes em qualquer favela do Rio de Janeiro. Um dos projetos de mais visibilidade surgidos por causa da chacina foi a Casa da Paz. Iniciativa do sociólogo Caio Ferraz, o projeto foi instalado na casa em que morreram os oito integrantes da mesma família. Depois de um tempo, o sociólogo acabou indo morar nos EUA e a Casa ficou sob a direção de André Fernandes, que assumiu o posto em 1997. Atualmente a Casa da Paz não existe mais, no entanto, continua a ser reverenciada como símbolo da reação pacífica e necessária àquele episódio. O projeto se baseava não só no compromisso de lembrar sistematicamente o crime e não deixá-lo cair no esquecimento, com a realização de manifestações, passeatas etc. Pretendia também possibilitar o encontro de crianças e jovens com a cultura, com a cidadania. Para André Fernandes, a partir do momento em que as pessoas, não só os moradores de Vigário Geral, conquistarem sua cidadania, elas próprias, naturalmente, não deixarão que a chacina saia da lembrança da sociedade e cobrarão justiça para o caso. "Che Guevara dizia: 'a missão da revolução é ver o povo liberto da sua alienação'. Acredito nisso. Acredito que as pessoas têm que conquistar sua cidadania, por obra própria. E acho que, assim, vão lutar para que essa cidadania seja respeitada", diz ele. Por isso, André - que atualmente dirige a ONG Casa da Cidadania - defende que o dia 30 de agosto seja sempre lembrado como emblema "do luto contra a violência em todas as favelas". Assim como a Casa da Paz, o Afro Reggae nasceu com a intenção de oferecer a jovens de uma comunidade carente oportunidades e perspectivas através da cultura. A comunidade foi Vigário Geral e o ano de nascimento da ONG foi exatamente 1993. José Junior, diretor geral da instituição, ressalta que seu surgimento não aconteceu em decorrência do crime. "O Afro Reggae tinha nascido em janeiro daquele ano, com o jornal Afro Reggae Notícias. Logo depois, em maio, já tínhamos expandido o trabalho, usando a música", recorda. Mesmo assim, a atuação da ONG - pelo que representa em termos de mostrar caminhos alternativos ao tráfico e à criminalidade - é referência quando se pensa em luta contra a violência entre os jovens, principalmente em Vigário Geral. Segundo Júnior, realizar essa mudança cultural, "de quebrar a cultura do tráfico, da violência banal", era uma das tarefas mais trabalhosas. No entanto, hoje em dia os integrantes dos vários projetos do Afro Reggae são conhecidos e reconhecidos na favela de Vigário Geral, onde conseguiram mostrar que música, dança e circo também podem figurar nos sonhos dos jovens do lugar. Mesmo assim, Junior reconhece que o que aconteceu há dez anos na comunidade vai ficar por muito tempo na lembrança das pessoas. "A comoção, acho que não vai acabar nunca. Vão se passar décadas e o que aconteceu em Vigário vai sempre ser lembrado". E deve ser lembrado. Afinal, o crime, além de ter sido gratuito - "todos eram inocentes", lembra Junior, explicitando um motivo especial de revolta -, ainda não foi devidamente investigado e não teve todos os reais culpados punidos. Impunidade, mais uma vez Perpetuando a impunidade tradicional no Brasil, o processo judicial para investigar a morte de 21 pessoas em Vigário Geral até hoje não foi concluído. Mais do que isso, teve uma das mais surpreendentes trajetórias: o processo iniciado em 1993, no qual 33 policiais haviam sido indiciados, foi parado em 1995, quando veio a público uma fita com gravações de conversas de cerca de 10 PMs acusados de envolvimento no crime. Na fita, eles faziam acusações a um outro grupo de policias militares. Assim, os dez PMs foram absolvidos, por quatro votos a três em julgamento de 1999. Este é o processo chamado de Vigário 1. A partir das conversas gravadas e das acusações nelas contidas, o Ministério Público abriu outro processo, denominado Vigário 2, no qual os nove PMs absolvidos em julho de 2003 estavam indiciados. A absolvição desses policiais militares se deu por pedido do próprio Ministério Público. "A fita é uma armação para absolver aqueles de Vigário 1", acredita o promotor público à frente do caso, Paulo Rangel. Ele explica que, agora, o caso Vigário 2 foi concluído e que vai-se continuar com Vigário 1. Dos policiais indiciados no primeiro processo, alguns haviam sido absolvidos - os dez em 1999 -, alguns impronunciados (ou seja, não havia provas contra eles), outros morreram e seis deles ainda vão a julgamento. Entre estes seis, cinco já foram julgados e têm direito a novo julgamento, por terem sido condenados a mais de 20 anos de prisão. "A situação se resume ao seguinte: seis policiais vão a julgamento ainda este ano - dois em setembro (no dia 12), dois em outubro e dois em novembro. Cinco deles já foram condenados, mas têm direito a novo julgamento. Além disso, já entramos com recurso para que a absolvição dos dez PMs em 1999 seja anulada", explica o promotor. Segundo ele, dos três desembargadores que têm que dar parecer sobre o recurso, um já decidiu favoravelmente. Atualmente, o recurso está com a desembargadora Nilza Bittar, que vai apresentar sua decisão depois do dia 2 de setembro - "para deixar passar a semana de aniversário do crime", explica Rangel. O promotor, que está no caso desde outubro de 2002, acredita que os desembargadores vão dar "provimento ao recurso", ou seja, que vão decidir pelo cancelamento da absolvição. Para Rubem César, "um número enorme de policiais envolvidos já está morto, o julgamento foi reaberto, enfim, a Justiça falhou". Lacuna permanente Infelizmente, o que se constata tanto tempo depois do crime é que não foram implementadas políticas eficazes para acabar com as circunstâncias que permitiram um crime como esse. "Não houve políticas de direitos humanos e de segurança que conseguissem a superação da violência local. Chegou a existir iniciativas inovadoras, que permitiram um período de não-guerra, quase paz, que depois não mantiveram a eficácia", relembra Rubem César. Enquanto isso, a própria sociedade se recrudesceu e notícias sobre guerras diárias e mortes à prestação já não comovem tanto, especialmente quando acontecem nas favelas. "A sociedade coloca tudo no mesmo bolo e tende a acreditar que crime cometido em favela tem a ver com o tráfico", pondera André Fernandes. "A polícia não faz questão de mostrar a verdade nesta história. E a sociedade admite, pois está cansada da violência", completa. Entre pouco esforço policial para esclarecer e processos judiciais embolados, fica a lembrança de um crime que ainda não foi completamente entendido, para o qual dificilmente será feita justiça e que não vai, nem poderia, ser aceito. Mesmo que todos os que ainda vão ser julgados sejam condenados exemplarmente, uma lacuna sempre vai permanecer quando se lembrar da chacina de Vigário Geral. É a gratuidade das mortes de 21 inocentes. Isso ninguém nunca explicou e nenhuma sentença judicial compensará. A verdade é que a violência no Rio de Janeiro continua tão grande quanto estava naquela época. Grupos de pessoas assassinadas são encontrados quase todos os dias, como aconteceu recentemente na própria favela de Vigário Geral, quando sete pessoas foram encontradas mortas (todas suspeitas de envolvimento no tráfico) no último dia 17 de julho, vítimas da guerra entre os traficantes do local e de Parada de Lucas. A diferença é que, em primeiro lugar, a chacina de Vigário marcou um ponto de choque e saturação da sociedade. Em segundo - é sempre bom e necessário repetir - as pessoas mortas naquela ocasião eram inocentes. Para agravar, foram alvejadas e atingidas por policiais, representantes da lei que teoricamente deveriam defendê-las. Culpadas somente por residirem na favela em que traficantes encontram espaço para agir, em parte por culpa da própria polícia que foi lá vingar a morte de quatro de seus homens. Ao invés de encontrarem vingança, os PMs provocaram revolta. Em vez de receberem solidariedade por terem membros da corporação assassinados, causaram ultraje. Posteriormente, para se livrarem da punição adequada, mentiram e acusaram inocentes. Componentes suficientes para que, por mais que sejam julgados e condenados, recebam apenas revolta e ultraje - enquanto carregam na lembrança o peso de 21 inocentes mortos.
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